Lembro como se fosse hoje. Como se fosse algo acontecendo agora, à minha frente. À luz de meus olhos atentos. Seria o primeiro dia das aulas de português no colégio Marista em Vila Velha. Creio que era o primeiro ou o segundo ano do ginásio. Sentados em suas carteiras os alunos aguardavam as primeiras palavras do professor, um senhor de terno e gravata, pescoço um pouco curvo, inclinado para frente. Tinha um cabelo à moda da época dos anos 50 apesar de já se esvaírem os anos 60. Seu terno parecia ser de linho, azul bem clarinho, com os amarrotados das cadeiras em que sentara. Educadamente, e essa seria sempre a sua marca, iniciou sua aula. Para mim, a melhor que até então tivera, sem ainda saber que seria a melhor de todas que ainda haveria de ter em minha vida acadêmica. Seu nome era Aylton Bermudes. Devia estar por volta dos 50 anos de idade ou pouco menos. Um senhor de idade, pois para nós, àquela época, assim eram percebidas as pessoas nessa faixa etária. Já na primeira aula percebi o quanto iria gostar daquela matéria. Ele não era apenas um professor de português com aquelas infinitas regras gramaticais. Era um livro que andava e falava. Ou melhor, uma biblioteca.
Quando falava da trindade parnasiana transportava a aura daqueles momentos para o meu crescente interesse pela literatura. Eu devia ter uns 10 ou 11 anos de idade, mas desde os meus oito anos o que eu pedia de aniversário eram livros. Havia uma coleção da editora melhoramentos chamada clássicos da literatura universal: o Último dos Moicanos, Robin Hood, O Máscara de Ferro, As viagens de Gulliver e outros. E aquele professor vinha acrescentar a perspectiva da língua portuguesa com Almeida Garret e nossos ícones maiores de nossa literatura brasileira como Cruz e Souza, por exemplo. Aulas memoráveis de um professor memorável. Certo dia ele lançou uma tarefa: redigir uma crônica sobre um fato qualquer ocorrido em nossa rua de moradia. Quando cheguei a minha casa já sabia sobre o que escrever. Poucos anos antes eu havia presenciado o sofrimento e o falecimento de uma pessoa muito querida de minha família e meus irmãos, vítima de câncer. Criança eu apenas ouvia os relatos de seu tratamento no Rio de janeiro. Mas, uma dessas tardes vazias me permitiu ver uma ambulância chegando a sua residência, vinda do Rio após longo tratamento. Dias depois morreria. Seu nome era Mary, sua vida uma saudade.
E foi sobre isso que escrevi. Para minha surpresa, minha mãe toda orgulhosa, veio feliz me dizer que haveria uma reunião de pais, mestres e alunos no salão nobre do Colégio Marista e que o professor Aylton nos fazia convidados de honra. Essas reuniões costumavam ser solenes. A escola era uma referencia na vida das pessoas e da cidade. Não sabíamos ainda o que seria, mas ela já estava feliz assim mesmo. Pois bem, lá, em frente a todas aquelas pessoas, o professor enalteceu entusiasmadamente a minha crônica e a leu, em voz pausada, no tom de sua emoção. Ao seu lado, eu estava imóvel, mas o meu coração borbulhava de felicidade. Ser homenageado assim pelo meu ídolo e em sua presença foi inesquecível. A direção da escola enviou a crônica para a família que perdera o ente querido e nunca mais eu a encontrei. Nunca pude reler o que escrevi naquela ocasião. Quando li a bela crônica de Hélio Gualberto em A Gazeta de 29 de junho de 2011, lembrei-me daqueles dias, daquelas aulas. Do professor Aylton Bermudes, esperando que não tenha sido apenas um homônimo, mas ele próprio a que ambos nos referimos.
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