Sunday, May 29, 2011

Fundão dos Índios

Houve um tempo, no Espirito Santo, em que uma jornalista marcou sua época pela forma como escrevia e comentava o cotidiano capixaba. Polêmica, ela tingia com tons fortes a fotografia urbana, o cenário em que se inseriam os novos ricos e a dinâmica social movida pelos bailes esvoaçantes da cidade. Pertenceu a uma era em que as mulheres ainda não tinham a personalidade empreendedora de hoje e de modo geral era possível dizer que muitas realmente eram madames, boas esposas, filhas comportadas aguardando o baile de debutante e as mais requintadas, boas para casar. Vitória, a capital, tinha no Teatro Carlos Gomes o som dos Mamíferos, no Mar e Terra as ironias de Carmélia e no Britz Bar a vida libertária da ilha. Os velhos canhões do Saldanha na verdade protegiam os namorados e frequentadores da boate Buteko. A vida corria assim. Os jornais locais eram de vanguarda. Bons jornalistas esquivavam-se dos golpes contundentes da ditadura e a Universidade Federal caminhava sem lenço e sem documento.
O centro da cidade abrigava seus trabalhadores com a mesma paixão que acalentava os boêmios, aspirantes a intelectuais, teatrólogos e cineastas potenciais. Esse era o palco em que Maria Nilce personificava sua coluna jornalística. Tinha uma grafia felina e provocante, muitas vezes. Creio que não tinha por preocupação agradar a todos. Nem a poucos. Seu compromisso era com a sua percepção da realidade e das pessoas. Marcou época. Seja pela sua peculiar beleza, pela maneira ousada como se vestia e se portava ou pela expectativa matinal que os leitores carregavam até lerem seu texto, sempre imprevisível. Cultivou afetos e desafetos. Plantou sementes que lhe trouxeram tanto o bem quanto o mal. Como aquele definitivo, que lhe tirou covardemente a vida. A Vitória da rua sete, do Miramar, do Libanês, do Praia tênis e do Álvares, do caldo Lira, do cine São Luís, do Jairo Maia e Golias, não mais a leria.
A leitura de jornais antigos permite perceber que ela tinha muito orgulho de onde nascera. Pode ser até uma percepção equivocada minha, mas vi alguns textos em que isso era cristalino como água de fonte límpida. Dizia com orgulho que nascera em Fundão. Fundão dos índios, acrescentava. Não era comum àquela época pessoas emergentes valorizarem sua origem interiorana. Talvez fosse assim que ela gostava de provocar a elite emergente, as socialites de então. Mas o que é possível afirmar é que ela tinha muito orgulho de sua cidade natal. E tinha razão para isso. Aquele município tem uma significativa história na formação da vida capixaba. O trem, ao chegar, passava solenemente pela alegria de seus moradores, trazendo e levando seus sonhos e esperanças. A estrada de ferro Vitória-Minas cortava uma cidade que já recebeu duas visitas importantes: o imperador Pedro II e o presidente Dutra.
Considerando todo o amor de Maria Nilce pelo seu município, certamente, se fosse viva ainda, hoje ela usaria seus tons mais contundentes para registrar sua indignação pelos indícios de corrupção e de formação de quadrilha. Por isso lembrei-me dela. Porque é preciso haver alguém que tenha na palavra escrita a verve da crítica sem os disfarces da prudência. Sem o medo do revés. A expectativa dela certamente seria, caso os indiciados seja julgados culpados, que seus crimes não fiquem impunes, como o dela parece que ficou.

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