Saturday, October 31, 2009

Viver e morar



Depois do almoço, em uma daquelas típicas tardes cariocas, os dois amigos continuavam dedilhando o piano para lá e para cá, buscando a harmonia e as notas que melhor traduzissem o que sentiam e queriam dizer às pessoas, ou, principalmente, às mulheres que sonhavam amar. O maestro Jobim e o “poetinha” Vinicius, naturalmente acompanhados de um “uisquezinho”, cantarolavam, solfejavam e escreviam a voz de suas almas e o lamento de seus corações. O contar de suas histórias atribui que, depois de certo tempo e algumas bebidinhas, Tom olha por cima dos óculos e diz: sabe Vinicius o Brasil é bom de viver e ruim de morar, e nos Estados Unidos é bom de morar e ruim de viver. Otimista, o poeta pode ter respondido: Tomzinho, um dia esse país vai ser bom de viver e bom de morar.

O tempo caminhou e hoje percebemos que o que o poeta almejou ainda está bem distante. E quanto mais o Brasil se organiza, mais difícil fica viver, no sentido jobiniano da palavra. O maestro falava de fazer serenata altas horas da madrugada na rua da namorada; de tomar uma cervejinha ou um chope na calçada; da média com pão com manteiga na chapa da padaria, em pé no balcão, do futebol na praia, emfim de ser brasileiro. Morar, em compensação não seria tão agradável. O vizinho da namorada não conseguia dormir com o som do violão dos “corações vagabundos”; pessoas passando pela rua, como carros, já que as calçadas estavam cheias de animados aspirantes a técnicos de futebol, raposas políticas e críticos de arte. Tudo regado ao sabor do levedo de cerveja, como no bar do Zito, na Praia da Costa. Morar sempre foi uma grande tolerância do brasileiro, para a felicidade geral de todos.

No exterior era muito bom, sem grades nas janelas, sem barulhos depois das dez da noite, jardim sem muros, estacionamentos respeitados e organizados. Viver, porém, era muito chato. Nada de cervejinha nas calçadas, bares fechando antes das dez da noite, a previsibilidade e a rotina dos dias que se sucedem, falar baixo, estacionar certo e viver como se fosse o dente de uma engrenagem, Os dois gênios brasileiros divagaram bastante, como se filósofos fossem, até a última gota. Beberam dissecando o lado bom da cultura brasileira, esse jeitinho brasileiro, um traço cultural eticamente aceito por ser genuíno, natural e desprovido da intenção de levar vantagem pessoal no que faz. Apenas o doce prazer de viver, de forma amistosa e comunicativa. Algumas leis surgiram e esse “viver” ficou mais difícil: lei do silêncio, lei seca para bebidinhas, código municipal de posturas, delimitação de espaços nas praias, padarias com mezinhas numeradas e garçonetes alfabetizadas. Ao se organizar nesse sentido o Brasil ofuscou aquele “viver”. Deixa saudades!

Felizmente, ao se organizar o país também reduz ou elimina práticas da malandragem, da esperteza, do se dar bem à custa de alguém. Isso não é jeitinho brasileiro, não é genuíno do brasileiro. Isso é uma deturpação da gênese brasileira, do seu jeito de ser. E esse tipo de viver não deixa saudades ao ser atacado gradualmente. Organiza-se ao ter Lei de responsabilidade fiscal, para aqueles que têm comportamentos e objetivos inadequados à administração municipal; controle eletrônico de emissão de notas fiscais para apurar eventuais desvios de arrecadação em supermercados; Conselho Nacional de Justiça para avaliar o desempenho dos Tribunais de Justiça; órgãos de auditoria nas ações públicas que, se necessário for, haverão de “travar” o PAC como reclama nosso presidente, que agora é “o cara” de Jesus. Lê seus pensamentos e decide por ele. Além disso, regulamentação e direitos constituídos em organizações não governamentais para resguardar os direitos e exigir deveres dos cidadãos. Esse deve ser o nosso sonho coletivo.
Mais do que crescer, o Brasil precisa se organizar. E assim, quem sabe mais tarde, quando a ilusão, o fim de quem ama esse país, me chame, eu possa dizer do sonho que tive: que não seja imortal posto que a chama, mas que seja infinito enquanto dure!

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