No novo e brilhante filme de
Bigelow, “A Hora mais escura”, o legítimo e o ilegítimo se confundem sob a égide
da vingança. Ele me fez lembrar do período em que aconteceu o ataque às torres
gêmeas em New York. Eu
estava lá. Ao saborear um tiramissú no upper east side com amigos, em um
pequeno e aconchegante restaurante - um “dinner” como dizem os Newyorkers - eu
percebi que havia um clima estranho na cidade, vários dias antes do terror.
Conversávamos sobre o ambiente multicultural da cidade, sua irreverência
emocional, sua verve musical, sua economia pulsante, seus letreiros esvoaçantes
e seu povo sempre andante. Mas, escondíamos no pensamento o risco de uma
arrogância presidencial na figura de George Bush em questões globais. Era algo
velado, admitido apenas no âmago de algumas pessoas. Depois, no Arthur´s Place,
lá no Village, aonde sempre vou, ouvi um desafinado imigrante recém chegado do
oriente médio cantar uma música no intervalo da apresentação da banda local.
Parecia um folk singer. Ou pretendia ser um.
E veio um misto de Dylan e Young
cantando como se fosse uma história a ser contada, sobre viver o sonho
americano, de realizar sua vida na América. Em um inglês razoável, gutural e
suave, dizia frases emocionadas e produzia três ou quatro acordes. Recebeu
aplausos de alguns exímios bebedores de cerveja, alguns yuppies de wall street
e outros andarilhos perdidos na noite. A noite estava calma perto do Blue Note
e quase ao lado do The Duplex, onde Streisand começou sua carreira. As
garçonetes nem se deram conta que ele havia cantado ou que existira naqueles
vãos momentos. Contavam "tips". Mais tarde, depois do orvalho, fui para casa torcendo por ele,
mas sabendo dos obstáculos que teria que vencer. Como disse Cat Stevens, das
“Mountains to climb”.
Dias depois veio o terror, a
trágica ópera inaudita. A cidade nocauteada cambaleava tropeçando entre sonhos
e pesadelos ao chão, em forma de aço retorcido. As pessoas não se perguntavam,
pois as respostas seriam indesejadas. A cidade calou-se. Seu coração ao pó
retornou. Qualquer outra cidade do mundo teria sucumbido, desvanecido por um
longo tempo. New York não. Prosseguiu, ainda que trôpega. Um presidente inepto
e rude, porém, piorou as coisas; aprofundou o caos e fez emergir a vingança.
Valeu-se de um estado de espírito cívico atingido mortalmente e incitou as
pessoas à sua ira. Ampliou o flagelo por meio de uma anuência tempestiva, com
argumentos falsos. Instaurou a insegurança e o medo, senão o pânico. E assim
foi reeleito. Ao fim do mandato, colheu o desastre, a debilidade moral e
econômica de uma nação que tem defeitos, como todas, mas muitas virtudes, como
poucas.
Então, essa mesma nação mostrou
do que é capaz no sentido de revitalizar-se. De reconhecer abertamente seus
erros, expor suas chagas e erguer a cabeça, impondo a democracia em sua melhor
expressão. Obama, um “coloured people”, representou isso. Mulato, nem tanto
negro, nem tanto branco, extremamente hábil em lidar com esses limites
ambíguos, venceu as eleições para presidente da mais importante nação do mundo.
Afro-descendente, pais separados, pai queniano, padrasto da polinésia, mãe
“wasp” (White, anglo-saxon, protestant), nascido no Haway - algo pouco
genuinamente americano - morador de Chicago e professor acadêmico não muito
convencional.
Sabendo da importância da mudança
pela força popular, mesmo o voto não sendo obrigatório, eleitores compareceram
às urnas, em filas longas, com frio, antes de irem para o trabalho ou depois do
trabalho, pois não foi feriado, e disseram ao mundo “Yes, we can”. Estados
soberanos, federativos, os pequenos tão importantes quanto os grandes, deram um
basta à era Bush, às maquiagens da Palin e às bravatas de McCain.
Recentemente fui a Washington e,
próximo a Union Station, tradicional estação de trens dos Estados Unidos,
passei por alguns pedintes, moradores de rua. Vítimas da crise e do desemprego.
Fui surpreendido por um deles ao me oferecer um retrato de Obama. Perguntei
quanto custava e ele me disse: meu sonho não tem preço, é de graça para você.
Quanto mais pessoas sonharem juntas, mais rápido ele será realidade. Percebi em
seus olhos uma luz diferente, um filete de sol naquela pele negra, marcada pelo
tempo e manchada pela neve que começava a cair, bem fina, contrastando com a
face enrugada dos “homeless”. A neve nívea rabiscava seu rosto como giz em
quadro negro. Logo alguns outros se chegaram e diziam uníssonos que tinham
alguém que olharia por eles. Sabiam que não seriam beneficiados agora, talvez.
Mas que a geração seguinte teria melhores leis e traços culturais para reduzir
seu infortúnio. No fim da tarde, o sol já tingindo de dourado as colunas do
monumento a Lincoln, despedi-me daquelas pessoas e lhes parabenizei pelo sonho
e pelo desejo incontido de sonhar. Como King ousara um dia.
Abraçado pela noite que chegava
fui ao “The Dubliner”, um Pub irlandês muito tradicional. Lá estava o som de um
violão de cordas de aço e um cantor que tropeçava nos acordes e na afinação,
mas fazia todos cantarem, felizes. Lembrei do pub “Shamrock” em Salzburg. Lembrei
também do Arthur´s e de New York. E pensei por onde andaria aquele tímido
cantor naquela noite. Se havia superado as montanhas à sua frente.
Já no avião, à janela, de volta
para o Brasil, revi os traços da cidade e da Casa Branca, hoje orgulho e
esperança de parte de uma geração. Ao rever o Congresso lembrei que uma
andorinha só talvez não faça um bom verão. Mas, sempre vale pena acreditar e
tentar voar o suficiente para aquecer corações e mentes. Como se fosse o
próprio verão. O filme de Bigelow pode ser mais uma andorinha.
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