Saturday, February 16, 2013

Bigelow, brilhante!


 
 
No novo e brilhante filme de Bigelow, “A Hora mais escura”, o legítimo e o ilegítimo se confundem sob a égide da vingança. Ele me fez lembrar do período em que aconteceu o ataque às torres gêmeas em New York. Eu estava lá. Ao saborear um tiramissú no upper east side com amigos, em um pequeno e aconchegante restaurante - um “dinner” como dizem os Newyorkers - eu percebi que havia um clima estranho na cidade, vários dias antes do terror. Conversávamos sobre o ambiente multicultural da cidade, sua irreverência emocional, sua verve musical, sua economia pulsante, seus letreiros esvoaçantes e seu povo sempre andante. Mas, escondíamos no pensamento o risco de uma arrogância presidencial na figura de George Bush em questões globais. Era algo velado, admitido apenas no âmago de algumas pessoas. Depois, no Arthur´s Place, lá no Village, aonde sempre vou, ouvi um desafinado imigrante recém chegado do oriente médio cantar uma música no intervalo da apresentação da banda local. Parecia um folk singer. Ou pretendia ser um.

 

E veio um misto de Dylan e Young cantando como se fosse uma história a ser contada, sobre viver o sonho americano, de realizar sua vida na América. Em um inglês razoável, gutural e suave, dizia frases emocionadas e produzia três ou quatro acordes. Recebeu aplausos de alguns exímios bebedores de cerveja, alguns yuppies de wall street e outros andarilhos perdidos na noite. A noite estava calma perto do Blue Note e quase ao lado do The Duplex, onde Streisand começou sua carreira. As garçonetes nem se deram conta que ele havia cantado ou que existira naqueles vãos momentos. Contavam "tips". Mais tarde, depois do orvalho, fui para casa torcendo por ele, mas sabendo dos obstáculos que teria que vencer. Como disse Cat Stevens, das “Mountains to climb”.

 

Dias depois veio o terror, a trágica ópera inaudita. A cidade nocauteada cambaleava tropeçando entre sonhos e pesadelos ao chão, em forma de aço retorcido. As pessoas não se perguntavam, pois as respostas seriam indesejadas. A cidade calou-se. Seu coração ao pó retornou. Qualquer outra cidade do mundo teria sucumbido, desvanecido por um longo tempo. New York não. Prosseguiu, ainda que trôpega. Um presidente inepto e rude, porém, piorou as coisas; aprofundou o caos e fez emergir a vingança. Valeu-se de um estado de espírito cívico atingido mortalmente e incitou as pessoas à sua ira. Ampliou o flagelo por meio de uma anuência tempestiva, com argumentos falsos. Instaurou a insegurança e o medo, senão o pânico. E assim foi reeleito. Ao fim do mandato, colheu o desastre, a debilidade moral e econômica de uma nação que tem defeitos, como todas, mas muitas virtudes, como poucas.

 

Então, essa mesma nação mostrou do que é capaz no sentido de revitalizar-se. De reconhecer abertamente seus erros, expor suas chagas e erguer a cabeça, impondo a democracia em sua melhor expressão. Obama, um “coloured people”, representou isso. Mulato, nem tanto negro, nem tanto branco, extremamente hábil em lidar com esses limites ambíguos, venceu as eleições para presidente da mais importante nação do mundo. Afro-descendente, pais separados, pai queniano, padrasto da polinésia, mãe “wasp” (White, anglo-saxon, protestant), nascido no Haway - algo pouco genuinamente americano - morador de Chicago e professor acadêmico não muito convencional.

 

Sabendo da importância da mudança pela força popular, mesmo o voto não sendo obrigatório, eleitores compareceram às urnas, em filas longas, com frio, antes de irem para o trabalho ou depois do trabalho, pois não foi feriado, e disseram ao mundo “Yes, we can”. Estados soberanos, federativos, os pequenos tão importantes quanto os grandes, deram um basta à era Bush, às maquiagens da Palin e às bravatas de McCain.

 

Recentemente fui a Washington e, próximo a Union Station, tradicional estação de trens dos Estados Unidos, passei por alguns pedintes, moradores de rua. Vítimas da crise e do desemprego. Fui surpreendido por um deles ao me oferecer um retrato de Obama. Perguntei quanto custava e ele me disse: meu sonho não tem preço, é de graça para você. Quanto mais pessoas sonharem juntas, mais rápido ele será realidade. Percebi em seus olhos uma luz diferente, um filete de sol naquela pele negra, marcada pelo tempo e manchada pela neve que começava a cair, bem fina, contrastando com a face enrugada dos “homeless”. A neve nívea rabiscava seu rosto como giz em quadro negro. Logo alguns outros se chegaram e diziam uníssonos que tinham alguém que olharia por eles. Sabiam que não seriam beneficiados agora, talvez. Mas que a geração seguinte teria melhores leis e traços culturais para reduzir seu infortúnio. No fim da tarde, o sol já tingindo de dourado as colunas do monumento a Lincoln, despedi-me daquelas pessoas e lhes parabenizei pelo sonho e pelo desejo incontido de sonhar. Como King ousara um dia.

 

Abraçado pela noite que chegava fui ao “The Dubliner”, um Pub irlandês muito tradicional. Lá estava o som de um violão de cordas de aço e um cantor que tropeçava nos acordes e na afinação, mas fazia todos cantarem, felizes. Lembrei do pub “Shamrock” em Salzburg. Lembrei também do Arthur´s e de New York. E pensei por onde andaria aquele tímido cantor naquela noite. Se havia superado as montanhas à sua frente.
 
 

Já no avião, à janela, de volta para o Brasil, revi os traços da cidade e da Casa Branca, hoje orgulho e esperança de parte de uma geração. Ao rever o Congresso lembrei que uma andorinha só talvez não faça um bom verão. Mas, sempre vale pena acreditar e tentar voar o suficiente para aquecer corações e mentes. Como se fosse o próprio verão. O filme de Bigelow pode ser mais uma andorinha.


 

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