Thursday, February 11, 2010

Corpus Nus




A câmera vinha filmando do alto, flanando lenta e preguiçosamente. Uma pessoa, um político, discursava sobre as benesses e as ações desenvolvidas na cidade, enaltecendo sua gestão. Londres estaria cada vez mais segura. Jack, o estripador, não reapareceria. Bajuladores de plantão, empregados públicos subservientes e outros alpinistas sociais sorriam e aplaudiam garbosamente a prolixa autoridade, enredada em um terno enfadonho. Damas da sociedade e até algumas da noite mesmo, quem sabe em busca de clientes, acompanhavam seus maridos ou potenciais clientes. Londres era assim. Artificial. De repente, um grito seco e estridente ecoa pelas ruas e alguém se debruça sobre o velho Tamisa. Lá está, boiando, um corpo nu. Morto. Uma mulher, rechonchuda como a moda sugeria. Em seu pescoço não havia um colar vistoso, mas uma gravata mortal que a enforcara. Todos ficaram estupefatos e o político pigarreou daqui, espirrou dali e, esgueirando-se entre as pessoas, empalideceu como vela em navio com escarlatina. Meu Deus, que violência! Assim Hitchcock iniciou Frenesi. Um clássico do cinema mundial.
Eu também vinha assim do alto. Não tão alto. Apenas descia a escada das estantes empilhadas de livros e papéis avulsos. Sentei ao notebook e busquei por noticias no gazeta on line. Vi muitas notícias políticas, em tempo real, inclusive a prestação de contas de nosso Governador. Ao ler, pensei como aqueles londrinos: nossa vida está melhor. Como no filme, deputados bem vestidos e mulheres perfumadas em vertiginosos saltos altos exibiam sorrisos e gestos de aprovação. O Espírito Santo era assim pintado. Um quadro formoso a ser exibido no restaurado Palácio Anchieta. Apenas um deputado resolveu ser impertinente e levantar questões e dúvidas comuns aos cidadãos, às ruas. Pronto. A Assembléia não deveria ser assim. Educadamente o Governador colocou-o em seu devido lugar, para regozijo, quem sabe, de seus pares. Como naquela manhã londrina.
Aí, ouvi o grito, em forma de palavras escritas. Logo abaixo dessa matéria outra dizia que acabavam de ser encontrados dois corpos nus. Boiando inertes. Duas mulheres nuas. Superamos Londres na filmagem. E, sem gravatas, claro. Mortes sem a sofisticação de Alfred, o diretor psicótico. Mas, com a crueldade de uma cidade violenta e nua. O tempo não esperou sequer a quarta feira seguinte, para tudo acabar em cinzas. Na Assembléia a vida continuava. Na maré, não. A morte boiava. Admiro o trabalho do governador Hartung, tenho muito respeito pela sua trajetória pública e torço pelo seu melhor desempenho. Mas, não pude deixar de ouvir o grito lancinante. Nem de sentir o cheiro mórbido do Tamisa. E, também, pensar como Hitch filmaria essa cena. Não a do mangue, banal, costumeira, cotidiana. Mas, a da Assembléia. Um evento de gala.

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